Diários de Vincent – impressões do estrangeiro – Evando Nascimento

Diários de Vincent: Impressões do estrangeiro é um ensaio-ficção de Evando Nascimento. A vida-obra de Van Gogh vem inspirando criadores há um século pelo menos. A escrita de um diário ficcional é um novo lance neste tabuleiro que mistura fascínio e interrogação. Um traço fica claro de saída aqui: não há nenhuma exploração sentimental da loucura, tampouco qualquer aposta na vitimização. O artista por trás destes diários é de uma racionalidade assombrosa.

É conhecida a apropriação ficcional de biografias pela literatura contemporânea. O sujeito da escrita é deslocado para um lugar difuso, desfazendo qualquer princípio de identidade que tenda a comprimir vida e obra. O “estrangeiro” que produziu as impressões de Vincent não está só em outro lugar; ele é, ao mesmo tempo, um pintor do século XIX e um escritor do século XXI.

Quando digo tratar-se de um ensaio, faço isso por conta do muito que se discute aí sobre arte, literatura, criação. Há uma atenção detida aos dois motivos que singularizaram a poética vangoghiana: a COR e a NATUREZA: “Minha definição de arte seria o homem acrescentado à natureza”. Acréscimo que se fazia pela densa pincelada de cor, que era ao mesmo tempo luz e sinestesia. Lembro aqui a observação de Gertrude Stein sobre as frutas pintadas por Matisse – ele dava a ver o cheiro delas.

Há um esforço notável por parte do autor em aliar, às divagações pessoais próprias de um diário, um espírito analítico incomum. Os quatro anos a que se referem estes diários – de 1886 a 1890 – talvez sejam os quatro anos mais transformadores na obra de um único artista na história da arte moderna. Nestes anos, Van Gogh atravessou o impressionismo e abriu a porta para os expressionismos do século XX. Depois de enorme aprendizado com os clássicos do Louvre, ele vai se familiarizando e sendo empurrado para a natureza, para o ar livre, pelos impressionistas – que de início causavam-lhe confusão.

Nesta combinação de rigor crítico e exercício ficcional, Evando respeita a própria escrita do pintor, sempre tão cuidadoso no trato com as obras de seus mestres e colegas – Rembrandt, Delacroix, Millet, Monet. Lendo estas páginas lembrei-me da opção acertadíssima do curador Paulo Herkenhoff, na Bienal da Antropofagia (1998) ao colocar, na sala contígua à de Van Gogh, a instalação dos metros delirantes de Cildo Meireles. Aquelas réguas obsessivas e amarelas criavam uma métrica própria, ou seja, uma poética em diálogo transversal e intenso com o pintor holandês.

O retrato que vai sendo desenhado ao longo destas quase quatrocentas páginas é de um artista menos caricato e mais complexo: um homem inquieto, obsessivo, solitário, caudaloso, cosmopolita, que falava holandês, alemão, inglês e francês, que viveu nas principais capitais europeias, que conhecia profundamente literatura e história da arte. Sua procura pela pulsação viva da cor e da natureza levou-o para o Sul, para a luz, na busca do verdadeiro Midi, o meio-dia feliz, onde pôde entender “perfeitamente o provérbio alemão Onde a luz bate mais forte, a sombra é mais escura“. Provérbio sentido no olho e na alma do artista com uma intensidade fatal.

Luiz Camillo Osorio


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